Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 2 de agosto de 2008

ORFEU


Orpheus and Eurydice, Michael Putz-Richard (1868-?)

RAINER MARIA RILKE


Foto: autor desconhecido

Rainer Maria Rilke


DOS SONETOS A ORFEU

Um deus pode. Mas como erguer do sol,
na estreita lira, o canto de uma vida?
Sentir é dois; no beco sem saída
dos corações não há templos de Apolo.

Como ensinas, cantar não é a vaidade
de ir ao fim da meta cobiçada.
Cantar é ser. Aos deuses, quase nada.
Mas nós, quando é que somos? em que idade

nos devolvem a terra e as estrelas?
Amar, jovem, é pouco, e ainda que doam
as palavras nos lábios, ao dizê-las,

esquece os teus cantares. Já não soam.
Cantar é mais. Cantar é um outro alento.
Ar para nada. Arfar em deus. Um vento.

Tradução de Augusto de Campos

ORFEU

Orfeu Conduzindo Eurídice (1861).
Jean-Baptiste-Camille Corot(1796-1875).
Museum of Fine Arts, Houston, Texas

JORGE DE LIMA

INVENÇÃO DE ORFEU
(primeira parte)

Um barão assinalado
sem brasão, sem gume e fama
cumpre apenas o seu fado:
amar, louvar sua dama,
dia e noite navegar,
que é de aquém e de além-mar
a ilha que busca e amor que ama.

Nobre apenas de memórias,
vai lembrando de seus dias,
dias que são as histórias,
histórias que são porfias
de passados e futuros,
naufrágios e outros apuros,
descobertas e alegrias.

Alegrias descobertas
ou mesmo achadas, lá vão
a todas as naus alertas
de vaia mastreação,
mastros que apóiam caminhos
a países de outros vinhos.
Está é a ébria embarcação.

Barão ébrio, mas barão,
de manchas condecorado;
entre o mar, o céu e o chão
fala sem ser escutado
a peixes, homens e aves,
bocas e bicos, com chaves,
e ele sem chaves na mão.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

VÊNUS


Fonte: Wikimedia Commoms

O Nascimento de Vênus, Sandro Botticelli (c. 1485-86)

Galleria degli Uffizi, Florença

FEDERICO GARCIA LORCA


Federico Garcia Lorca



O POETA PEDE AO SEU AMOR
QUE LHE ESCREVA


Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.

O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de kordiscos e açucenas.

Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura.

Tradução de William Agel de Melo

quinta-feira, 31 de julho de 2008

ORFEU


Lamento de Orfeu, Alexandre Seon

DANTE MILANO


Fonte: betinamoraes.blogspot.com

Dante Milano


O BECO


No beco escuro e noturno
Vem um gato rente ao muro.
Os passos são de gatuno.
Os olhos são de assassino.

Esgueirando-se, soturno,
Ele me fita no escuro.
Seus passos são de gatuno.
Seus olhos são de assassino.

Afasta-se, taciturno.
Espanta-o meu vulto obscuro.
Meus passos são de gatuno.
Meus olhos são de assassino.


ESCULTURA

A forma da fêmea integrou-se no corpo do macho,
Ambos uma só pedra
Onde ressaltam, invisíveis, separando-os
As duas almas supérfluas.



ULISSES

Fonte: Wikimedia Commoms
Ulisses e as Sereias. Herbert James Draper (1909)

quarta-feira, 30 de julho de 2008

ZILA MAMEDE


Fonte: sitiorupestre-novapalmeira.blogspot.com

Zila Mamede


CANÇÃO DO SONHO OCEÂNICO
(primeira parte)

Empossei-me dos caminhos
convergentes para o mar.
Três dias nasci areias
depois, conchas esquecidas
na memória dos rochedos
que julgavam ser navios
carregados de luar.

Fui areia, agora, búzios
chamando os ventos do mar.
Quando me senti sargaços
pedi às algas tranqüilas
que me emprestassem coroas,
e vestindo lenda e sal
arranjei sete concertos
na paisagem mineral.

Compus meus olhos marinhos
quando a fuga da maré,
carregando os pensamentos
dos corais e dos recifes,
conduziu-me em sete fontes
dormindo peixes e estrelas
no outro sono do mar.

Agora nascida estrela
Algas, recife e coral,
Não me contentam areias
Nem me prende litoral.
Pedindo o vôo das gaivotas
em rumos desconhecidos,
sonhando estradas marinhas
compondo sete oceanos
para neles navegar.

Sou como o sal das salinas,
pois fui nascida do mar.

terça-feira, 29 de julho de 2008

VÊNUS

Fonte: Wikimedia - licença Creative Commoms

O Nascimento de Vênus (1879), William-Adolphe Bouguereau
Musée d'Orsay, Paris

STÉPHANE MALLARMÉ

BRISA MARINHA

A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.
Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres,
Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos.
Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos,
Impede o coração de submergir no mar
Ó noites! nem a luz deserta a iluminar
Este papel vazio com seu branco anseio,
Nem a jovem mulher que preme o filho ao seio.
Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas,
Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas!

Um Tédio, desolado por cruéis silêncios,
Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!
E é possível que os mastros, entre ondas más,
Rompam-se ao vento sobre os náufragos, sem mas-
Tros, sem mastros, nem ilhas férteis a vogar...
Mas, ó meu peito, ouve a canção que vem do mar!

Tradução de Augusto de Campos

segunda-feira, 28 de julho de 2008

MARTIN OPITZ

Fonte: Wikimedia Commoms

Martin Opitz


BEM VELOZ, A ÁGUA SE ESCOA

Bem veloz, a água se escoa;
Mais depressa a flecha voa;
E o vento, sem descansar,
Anda nuvens a arrastar;
Mas passam tão de corrida
Os homens vãos nesta vida,
Que tudo parece lento:
Água, nuvens, flecha e vento.

Tradução de A. Herculano de Carvalho

APOLO


Apolo tocando o alaúde, Riviere, 1874.

domingo, 27 de julho de 2008

PETHION DE VILLAR

NO REVERSO DE UM CROMO

A uma senhora
em dia de aniversário


Fosse meu verso aroma e a frase fosse flor,
Tivesse o verso meu mil formas peregrinas,
E a minha tosca rima o brilho, a tinta, o odor
Das rosas, dos jasmins dos cravos, das boninas;

Então Senhora, então formosa, um ramo cheio
De essências tropicais, de um gosto transcendente,.
Com a devida vênia e sem nenhum receio,
Eu vos daria hoje, ufano e alegremente.

Mas como do poeta as vozes langorosas,
Não podem transforma-se em flores, em perfumes
E a rima não possui o trescalar das rosas,
E a estrofe não contém da natureza os lumes;

Aceitai entretanto estas linhas sem cor,
Tal como esse buquê de violetas...Cai-me
Do lábio um riso - é pobre o mimo e sem valor, -
Mas é de coração, Senhora ! Desculpai-me.