Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 15 de novembro de 2008

VÊNUS E ADÔNIS

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Vênus e Adônis (1553), de Ticiano Vecellio

TONY TCHECA


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Tony Tcheca



A PROMETIDA

Dóli só
Djena sem ninguém
do romance inocente
a tragédia bacilenta

papá homem grande
se meteu
uma vaca
um saco de farinha
um tambor de cana
umas folhas de tabaco

a permuta
a prometida

três
dias
depois
da lua

com fome de amor
boca acre não come
com sede de ternura
garganta seca rejeita água
as lágrimas engrossam
e rolam
no rosto macilento

Djena dezassete chuvas
Djena uma vida por viver
Djena a prometida
Djena mulher de hoje
tem fome
não come
tem sede
não bebe

corpo de mulher
inerte como o silêncio
firme como a recusa
repousa intacta
num sono inviolável

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

APOLO

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Apolo (1520), de Dosso Dossi

RAINER MARIA RILKE

O TORSO ARCAICO DE APOLO

Não conhecemos sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado

Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.

De outro modo erguer-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros.
E não tremeria assim, como pele selvagem.

E nem explodiria para além de todas as fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: precisas mudar de vida.

Tradução de Paulo Quintela

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

AMAZONAS


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O Repouso das Amazonas, de Theodor Baierl

ANNE SEXTON


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Anne Sexton



O SOL

Tenho ouvido falar de peixes
que vieram acima pelo sol
e ficaram para sempre
ombro a ombro,
avenidas de peixes que nunca regressaram,
deles sugados
todos os pontos de orgulho e solidões.

Penso em moscas,
que das suas grutas torpes
saem ao terreiro.
Primeiro são transparentes.
Depois azuis com asas de cobre.
Rebrilham nas frontes dos homens.
Nem pássaro, nem acrobata,
hão-de mirrar como pequenos sapatos pretos.

Eu sou um ser idêntico,
doente do frio e do odor da casa,
dispo-me sob a lupa ardente.
A minha pele alisa-se como água do mar.
Ó olho amarelo,
deixa-me adoecer do teu calor,
deixa-me ser febril e carrancuda.

Toda me dou agora.
Sou a tua filha, a tua guloseima,
o teu padre, a tua boca, a tua ave,
e hei-de contar a todos histórias de ti
até posta de lado para sempre,
um magro pendão pardo.

Tradução de João Ferreira Duarte

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

HERMES


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Hermes, de Hendrick Goltzius

HILDA DOOLITTLE


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Hilda Doolittle


HERMES DOS CAMINHOS

I


A areia dura estala
E os grãos dela
São límpidos como o vinho.

Lá longe, por sobre as suas léguas,
O vento,
Brincando na vastidão da costa,
Ergue minúsculas cordilheiras,
E as grandes ondas
Rebentam-lhes por cima.

Mas mais do que os caminhos de mil espumas
Do mar,
Conheço-o a ele,
O das estradas triplas,
Hermes,
Aquele que espera.

Dúbio,
Face a três caminhos,
Dando as boas-vindas a viajantes,
Ele, a quem o pomar marinho
Abriga a ocidente,
A oriente
Expõe-se ao vento do mar;
Defronta as grandes dunas.

O vento investe
Pelas dunas
E a erva áspera que o sal encrostou
Responde.

Ui,
São chicotes nos tornozelos!


II

Pequeno é
Este ribeiro branco,
Fluindo abaixo do chão
Desde o monte sombreado de álamos,
Mas a água é suave.

Maçãs nas árvores rasteiras
São duras,
Pequenas demais,
Tardiamente amadurecidas
Por um sol desesperado
Debatendo-se contra a neblina.

Os ramos das árvores
Estão retorcidos
Pelos muitos ventos variáveis;
Retorcidos estão
Os ramos de folhas pequenas.

Mas a sombra que lançam
Não é a sombra do topo do mastro
Nem das velas rasgadas.

Hermes, Hermes,
O grande mar espumava
E rangia os dentes em meu redor;
Mas tu esperaste,
Onde a erva do mar se entrelaça
Na erva da terra.

Tradução de João Ferreira Duarte

terça-feira, 11 de novembro de 2008

URANO E CRONOS


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Cronos (Saturno) derrota seu pai Urano, de Giorgio Vasari

FRANÇOIS VILLON


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François Villon



BALADA DAS COISAS SEM IMPORTÂNCIA

Conheço se há moscas no leite,
Conheço pela roupa o homem,
Conheço o tédio e o deleite,
Conheço a fartura e a fome,
Conheço a mulher pelo enfeite,
Conheço o princípio e o fim,
Conheço pela chama o azeite,
Conheço tudo, menos a mim.

Conheço o gibão pela gola,
Conheço o rico pelo anel,
Conheço o fiel pela sacola,
Conheço a monja pelo véu,
Conheço o porco pela tripa,
Conheço o irmão pelo latim,
Conheço o vinho pela pipa,
Conheço tudo, menos a mim.

Conheço a mula e o cavalo,
Conheço o carro e a carreta,
Conheço a galinha e o galo,
Conheço o sino e a sineta,
Conheço a flor pelo talo
Conheço Abel e Caim,
Conheço o pote e o gargalo,
Conheço tudo, menos a mim.

Ofertório

Príncipe, conheço tudo em suma,
Conheço o branco e o carmim,
E a morte que o fim consuma.
Conheço tudo, menos a mim.

Tradução de Ferreira Gullar

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

BÓREAS E ORÍTIA


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Bóreas and Orítia, de Evelyn De Morgan

OSWALD DE ANDRADE


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Oswald de Andrade


PRONOMINAIS

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

domingo, 9 de novembro de 2008

AMAZONA


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Amazona Ferida (1903), de Franz von Stuck

JORGE LUIS BORGES

AS COISAS

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a ofendida
Violeta, monumento de uma tarde,
De certo inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas e taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão muito além de nosso olvido:
E nunca saberão que havemos ido.

Tradução de Ferreira Gullar