Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 13 de dezembro de 2008

ORFEU

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Orfeu (afresco)

MIA COUTO

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Mia Couto

FUI SABENDO DE MIM

Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia

pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia

fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei

eu vi
a árvore morta
e soube que mentia

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

DIANA

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O Banho de Diana (1559), François Clouet

RABINDRANATH TAGORE


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Rabindranath Tagore


O CÉU E O NINHO

És ao mesmo tempo o céu e o ninho.

Meu belo amigo, aqui no ninho,
o teu amor prende a alma
com mil cores,
cores e músicas.

Chega a manhã,
trazendo na mão a cesta de oiro,
com a grinalda da formosura,
para coroar a terra em silêncio!

Chega a noite pelas veredas não andadas
dos prados solitários,
já abandonados pelos rebanhos!
Traz, na sua bilha de oiro,
a fresca bebida da paz,
recolhida
no mar ocidental do descanso.

Mas onde o céu infinito se abre,
para que a alma possa voar,
reina a branca claridade imaculada.
Ali não há dia nem noite,
nem forma, nem cor,
nem sequer nunca, nunca,
uma palavra!

Tradução de Manuel Simões

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

ORFEU, PLUTÃO E PERSÉFONE

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Orfeu, Plutão e Perséfone, de François Perrier

GOETHE


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Goethe


POEMAS SÃO COMO VITRAIS PINTADOS

Poemas são como vitrais pintados!
Se olharmos da praça para a igreja,
Tudo é escuro e sombrio;
E é assim que o Senhor Burguês os vê.
Ficará agastado? — Que lhe preste!...
E agastado fique toda a vida!

Mas — vamos! — vinde vós cá para dentro,
Saudai a sagrada capela!
De repente tudo é claro de cores:
Súbito brilham histórias e ornatos;
Sente-se um presságio neste esplendor nobre;
Isto, sim, que é pra vós, filhos de Deus!
Edificai-vos, regalai os olhos!

Tradução de Paulo Quintela

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

ENÉIAS E DIDO

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Enéias conta a Dido os Infortúnios de Tróia, de Pierre-Narcisse Guérin

AL BERTO

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Al Berto

A INVISIBILIDADE DE DEUS

dizem que em sua boca se realiza a flor
outros afirmam:
a sua invisibilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão de sua bondosa mão

o certo
é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge etéreo
na vasta insônia que nos isolou do mundo
e sorri
dizendo que nos amou algumas vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser o meu

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

ODISSEU E CALIPSO

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Caverna Fantástica com Odisseu e Calipso, de Jan Brueghel the Elder

E. E. CUMMINGS

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e. e. cummings

A FUNÇÃO DO AMOR É FABRICAR DESCONHECIMENTO

a função do amor é fabricar desconhecimento

(o conhecido não tem desejo; mas todo o amor é desejar)
embora se viva às avessas, o idêntico sufoque o uno
a verdade se confunda com o fato, os peixes se gabem de pescar

e os homens sejam apanhados pelos vermes (o amor pode não se importar
se o tempo troteia, a luz declina, os limites vergam
nem se maravilhar se um pensamento pesa como uma estrela
— o medo tem morte menor; e viverá menos quando a morte acabar)

que afortunados são os amantes (cujos seres se submetem
ao que esteja para ser descoberto)
cujo ignorante cada respirar se atreve a esconder
mais do que a mais fabulosa sabedoria teme ver

(que riem e choram) que sonham, criam e matam
enquanto o todo se move; e cada parte permanece quieta:

pode não ser sempre assim; e eu digo
que se os teus lábios,que amei, tocarem
os de outro, e os teus ternos fortes dedos aprisionarem
o seu coração,como o meu não há muito tempo;
se no rosto de outro o teu doce cabelo repousar
naquele silêncio que conheço, ou naquelas
grandiosas contorcidas palavras que, dizendo demasiado,
permanecem desamparadamente diante do espírito ausente;

se assim for,eu digo se assim for —
tu do meu coração, manda-me um recado;
para que possa ir até ele, e tomar as suas mãos,
dizendo, aceita toda a felicidade de mim.
E então voltarei o rosto, e ouvirei um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.

Tradução de Cecília Rego Pinheiro

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

ENÉIAS E SIBILA

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Enéias e Sibila no Submundo (1598), Jan Brueghel The Elder

ANA HATHERLY


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Ana Hatherly


A VERDADEIRA MÃO QUE O POETA ESTENDE...

A verdadeira mão que o poeta estende
não tem dedos:
é um gesto que se perde
no próprio ato de dar-se

O poeta desaparece
na verdade da sua ausência
dissolve-se no biombo da escrita

O poema é
a única
a verdadeira mão que o poeta estende

E quando o poema é bom
não te aperta a mão:
aperta-te a garganta

domingo, 7 de dezembro de 2008

SEREIA

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O Pescador e a Sereia, de Knut Ekwall

ALMADA NEGREIROS


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Almada Negreiros


CANÇÃO DA SAUDADE

Se eu fosse cego amava toda a gente.

Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gêmea que nasceu sem vida, e amo-a a fantasia-la viva na minha idade.

Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde moras, dize se vives ou se já nasceste.

Eu amo aquela mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longíssimos.

Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas.

Eu amo aquelas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.

Eu amo os cemitérios - as lajes são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos floridos virgens nuas, mulheres belas rindo-se para mim.

Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.

Se eu fosse cego amava toda a gente.