Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 10 de janeiro de 2009

BACANAL

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Bacanal, de Auguste Léveque

BERTOLT BRECHT

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Bertolt Brecht

AOS QUE VIEREM DEPOIS DE NÓS

Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem (se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.

Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.

Tradução de Manuel Bandeira

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

APOLO E JACINTO

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A Morte de Jacinto, de Méry-Joseph Blondel

MARIANNE MOORE


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Marianne Moore


O QUE SÃO OS ANOS?

O que é nossa inocência,
nossa culpa? Frágeis, somos,
vulneráveis. E de onde vem a
coragem: a pergunta sem resposta,
a resoluta dúvida –
muda chamando, surda ouvindo – que
no infortúnio, na morte mesmo,
encoraja outras ainda
e em sua derrota anima

a alma a ser forte? Compraz-se
e com perspicácia vê
quem a mortalidade abrace
e no confinamento contra si
mesmo se volte, assim
como o mar que no abismo intenta ser
livre mas, incapaz de ser,
no ato de capitular
encontra seu perdurar.

Quem no sentimento espera
assim age. O próprio pássaro,
que ao cantar se engrandece, acera
o corpo aprumado. Embora cativo,
seu poderoso trino
diz: o contentamento é humilde;
quão puro é o regozijo.
Isto é mortalidade,
isto é eternidade.

Tradução de José Antonio Arantes

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

APOLO E MÁRSIAS

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Apolo e Mársias, de Palma il Giovane

JORGE WANDERLEY


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Jorge Wanderley


CORPO ANTERIOR

Que faço aqui, neste meu corpo, amando
Outro corpo, doado — e estranho a mim?
Dois corpos desiguais e no comando
O que eu decido. E quem decide assim?

Estranho todos os departamentos
E eu sou um outro, que não pousa aqui.
Cada nervura, poro, o tegumento
— Desconheço de todo, nunca vi.

Altura que não quero, mãos esquerdas,
O que está velho e não forjou memórias,
O gesto alheio, o olhar sobre tropeços,

São crônicas já pálidas, a perda
Do nunca possuído: alguma história
Que espera no futuro o seu começo.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

SONO E MORTE

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Sono e Morte carregando Sarpedão da Lícia (1803), de Henry Fuseli

D. H. LAWRENCE

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D. H. Lawrence

COBRA

Uma cobra veio à minha cisterna
Num dia escaldante, e eu em pijama por causa do calor,
Beber água.

Desci as escadas de jarro na mão
Na sombra funda e estranho odor de grande alfarrobeira negra
E tive de ficar à espera, tive de ficar à espera ali em pé, pois lá estava ela na cisterna antes de mim.
Entrou vinda de uma fenda na parte escura do muro de terra
E desceu, arrastando a frouxidão amarelo-castanha do seu ventre mole sobre o bordo da cisterna de pedra,
E apoiou a garganta no fundo de pedra
E, onde a água gotejara da torneira, numa pequena pureza,
Sorveu com a boca reta,
Bebeu suavemente a água que penetrou por entre as gengivas retas no longo corpo mole,
Silenciosamente.

Alguém chegara à cisterna antes de mim,
E eu, como quem chega em segundo lugar, à espera.

Deixou de beber e ergueu a cabeça como faz o gado,
E olhou-me vagamente como faz o gado ao beber,
E fez vibrar a língua bífida de entre os lábios e cismou um instante,
E curvou-se e bebeu um pouco mais,
Um ser castanho-de-terra, dourado-de-terra, vindo das entranhas ardentes da terra,
No dia de Julho siciliano, com o Etna a fumegar.

A voz da minha educação disse-me:
É preciso matá-la,
Pois na Sicília as cobras pretas são inocentes, as douradas, venenosas.

E vozes em mim disseram: se és homem,
Pega num pau e esmaga-a já, acaba com ela.

Mas devo eu confessar como gostei dela?
Como estava contente por ter vindo, qual hóspede tranquilo, beber na minha cisterna
E partir pacífico, apaziguado e sem agradecimentos
Para as entranhas ardentes da terra?
Foi por cobardia que não ousei matá-la?
Foi por perversidade que ansiei falar-lhe?
Foi por humildade que me senti honrado?
E senti-me tão honrado.

E, contudo, aquelas vozes:
Se não tivesses medo, matá-la-ias!

E era verdade, tinha medo, muito medo,
Mas mais ainda me sentia honrado
Por ela ter buscado a minha hospitalidade,
Vinda da porta negra da secreta terra.

Bebeu o que quis
E ergueu a cabeça, sonhadoramente, como quem bebeu,
E fez vibrar a língua como uma noite bífida no ar, tão preta,
Parecendo lamber os lábios,
E olhou à volta para o ar, sem ver, como um deus,
E devagar virou a cabeça,
E devagar, muito devagar, como que três vezes mais em sonho,
Pôs-se a arrastar a lenta linha longa do corpo em curva
E a trepar a rampa em ruínas do meu talude.

E, ao introduzir a cabeça naquele buraco horrível,
Ao içar-se lentamente, ajustando os ombros de cobra e entrando mais,
Uma espécie de horror, uma espécie de protesto contra aquela fuga para o horrendo buraco preto,
Aquele penetra deliberado na escuridão, aquele arrastar-se lento para lá,
Apossou-se de mim, agora que ela estava de costas.

Olhei à volta, pousei o jarro,
Peguei num pau desajeitado
E atirei-o com estrépito à cisterna.
Penso que não lhe acertou,
Mas, de súbito, a parte dela que ainda não entrara contorceu-se
Em pressa pouco digna,
Vibrou como um relâmpago e desapareceu

No buraco preto, a fenda de lábios de terra no meu muro
Que eu fiquei fitando fascinado na intensa calma do meio-dia.

Arrependi-me logo.
E pensei: que ato torpe, grosseiro e desprezível!
Odiei-me e às vozes da minha maldita educação humana.

E pensei no albatroz,
E desejei que regressasse, a minha cobra.

Pois de novo me aparecia como um rei,
Como um rei em exílio, deposto no submundo
E que há-de outra vez ser coroado.

E assim perdi a oportunidade com um dos senhores
Da vida.
E tenho algo a expiar;
Uma mesquinhez.

Tradução de Herberto Helder

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

AQUILES

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A Ira de Aquiles (1819), de Jacques-Louis David

DJUNA BARNES

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Djuna Barnes

CADÁVER A

Trouxeram-na para dentro, um minúsculo
Casulo esmigalhado,
O pequeno corpo ferido como
Uma lua amedrontada:
E com as suas ténues sinfonias
Feitas runas do entardecer.

CADÁVER B

Deram-lhe encontrões de um lado
Para o outro.
O seu corpo ficou à prova de choque
Como o de um gato da cidade.
Ficou lá fora sem vida como a cerveja morta
Que restou na pequena caneca.

Tradução de Fernanda Borges

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

JÚPITER, MERCÚRIO E VIRTUDE

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Júpiter, Mercúrio e Virtude, de Dosso Dossi

CLARICE LISPECTOR

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Clarice Lispector

OS ESPELHOS

O que é um espelho? Não existe a palavra espelho - só espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos. - Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? Não são preciso muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem intensa e insistente ad infinitum, liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos, reflexos dessa dura água. - O que é um espelho? Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. - Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre sem parar: pois espelho é o espaço mais profundo que existe.

domingo, 4 de janeiro de 2009

NÊMESIS

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Nêmesis, de Gheorghe Tattarescu

ADÉLIA PRADO

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Adélia Prado

CANÍCULA

Ao meio dia, deságua o amor
Os sonhos mais frescos e instigantes;
estou onde estão as torrentes.
Ao redor da casa grande espaça um quintal sem cercas
tomado de bananeiras, só bananeiras,
altas como coqueiros.
Chego e é na beira do mar encrespado de correntezas,
sorvedouros azuis.
Há um perigo sobre faixa exígua
que é de areia e é branca
Quero braceletes
e a companhia do macho que escolhi.