Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 24 de janeiro de 2009

PÃ E SÍRINX

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Pã e Sírinx, de Jean-François de Troy

FRANCISCO BRINES

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Francisco Brines

A CARNE E O SONHO

O tempo é mau ladrão: somente rouba ao homem
seus territórios de infeliz mendigo.
Mas se aquelas desditas pudesse recuperá-las,
não voltaria a ser a sombra que foi antes,
mas esse rei lendário que ainda tem que nascer.

O sonho é a matéria de que está feito o deus,
e, como a água ao fogo, aniquila-o a carne.

Tradução de José Bento

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

PÉGASO E MUSAS

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Quatro Musas, de Caesar van Everdingen

LUIS CERNUDA

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Luis Cernuda

PEREGRINO

Voltar? Volte o que esteja,
Após longos anos e longa viagem,
Exausto do caminho e cobiçoso
De sua terra, sua casa, seus amigos,
Do amor fiel que no regresso o espere.

Mas, tu? Voltar? Regressar não penses,
Senão seguir em frente, livre,
Livre para sempre, moço ou velho,
Sem filho que te busque, como a Ulisses,
Sem Ítaca que espera e sem Penélope.

Segue, continua e não regresses,
Fiel até ao fim da estrada e tua vida,
Não sintas falta do destino fácil,
Teus pés sobre uma terra virgem,
Teus olhos perante o nunca visto.

Tradução de J. T. Parreira

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

APOLO E DAFNE

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Apolo e Dafne, de Jakob Auer

OLEGÁRIO MARIANO

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Olegário Mariano

MEIO-DIA

Meio dia. A abrasada calmaria
No amplo manto de fogo a mata esconde,
Na fornalha que envolve o meio-dia
O ouro do sol tempera o ouro da fronde.

Pesa o silêncio sobre a frondaria…
Desponta o rio não se sabe donde.
Só, com a voz da mata, em agonia,
Uma cigarra zine e outra responde…

É o grito humano que da natureza
Sobe ao tranquilo azul da imensidade,
Ungido de amargura e de incerteza…

Querem chorar as árvores sem pranto
E as cigarras ao sol clamam piedade
Para suas irmãs que sofrem tanto!

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

DIANA E ENDIMIÃO

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Diana e Endimião, de Jérôme Martin Langlois

DAVID MESTRE

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David Mestre

SINAIS DE SALIVA

Sulco a terra
ouço
estalar
a som
bra das
palavras

Cavo
e des
cubro
raízes
adormeci
das

Procuram a
superfície
e dela
recebem
sinais de sal
iva

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

NEREIDAS

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As Nereidas (1902), de Gaston Bussiere

HERBERTO HELDER


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Herberto Helder


EM SILÊNCIO DESCOBRI ESSA CIDADE NO MAPA

Em silêncio descobri essa cidade no mapa
a toda a velocidade: gota
sombria. Descobri as poeiras que batiam
como peixes no sangue.
A toda a velocidade, em silêncio, no mapa -
como se descobre uma letra
de outra cor no meio das folhas,
estremecendo nos olmos, em silêncio. Gota
sombria num girassol. -
essa letra, essa cidade em silêncio,
batendo como sangue.

Era a minha cidade ao norte do mapa,
numa velocidade chamada
mundo sombrio. Seus peixes estremeciam
como letras no alto das folhas,
poeiras de outra cor: girassol que se descobre
como uma gota no mundo.
Descobri essa cidade, aplainando tábuas
lentas como rosas vigiadas
pelas letras dos espinhos. Era em silêncio
como uma gota
de seiva lenta numa tábua aplainada.

Descobri que tinha asas como uma pêra
que desce. E a essa velocidade
voava para mim aquela cidade do mapa.
Eu batia como os peixes batendo
dentro do sangue - peixes
em silêncio, cheios de folhas. Eu escrevia,
aplainando na tábua
todo o meu silêncio. E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol, no mapa
do mundo. Na sombra do sangue, estremecendo
como as letras nas folhas
de outra cor.

Cidade que aperto, batendo as asas - ela -
no ar do mapa. E que aperto
contra quanto, estremecendo em mim com folhas,
escrevo no mundo.
Que aperto com o amor sombrio contra
mim: peixes de grande velocidade,
letra monumental descoberta entre poeiras.
E que eu amo lentamente até ao fim
da tábua por onde escorre
em silêncio aplainado noutra cor:
como uma pêra voando,
um girassol do mundo.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

APOLO, ÁRTEMIS, NÍOBE E FILHOS

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A morte dos Nióbidas, por Pierre Charles Jombert

WALLACE STEVENS

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Wallace Stevens

RE-DECLARAÇÃO DE ROMANCE

A noite nada sabe dos cantos da noite
É o que é como sou o que sou:
E em percebendo isto percebo melhor a mim

E a você. Só nós dois podemos trocar
Um no outro o que cada um tem para dar.
Só nós dois somos um, não você e a noite,

Nem a noite e eu, mas você e eu, sozinhos,
Tão sozinhos, tão profundamente nós mesmos,
Tão mas além das casuais solitudes,

Que a noite é apenas um fundo para nós,
Supremamente fiel cada um a seu próprio eu,
Na pálida luz que um sobre o outro joga

Tradução de Ronaldo Brito