Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 7 de fevereiro de 2009

VÊNUS, CUPIDO E SÁTIRO

reprodução
Vênus e Cupido com um Sátiro (1538), de Correggio (Antonio Allegri)

ARTUR AZEVEDO

reprodução
Artur Azevedo

POR DECORO

Quando me esperas, palpitando amores,
e os lábios grossos e úmidos me estendes,
e do teu corpo cálido desprendes
desconhecido olor de estranhas flores;

quando, toda suspiros e fervores,
nesta prisão de músculos te prendes,
e aos meus beijos de sátiro te rendes,
furtando às rosas as purpúreas cores;

os olhos teus, inexpressivamente,
entrefechados, lânguidos, tranqüilos,
olham, meu doce amor, de tal maneira,

que, se olhassem assim, publicamente,
deveria, perdoa-me, cobri-los
uma discreta folha de parreira.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

HÉRCULES


wikimedia

Hércules Lutando com a Hidra de Lerna (1634), de Francisco de Zurbarán

FEDERICO GARCIA LORCA


PRANTO POR INÁCIO SANCHEZ MEJÍAS

3. CORPO PRESENTE

A pedra é uma fronte onde os sonhos gemem
sem água curva nem ciprestes gelados.
A pedra é uma espádua para levar ao tempo
com árvores de lágrimas e cintas e planetas.

Eu vi chuvas cinzentas correrem rumo às ondas
levantando seus temos braços esburacados,
para não ser caçadas pela pedra estendida
que desfaz seus membros sem se empapar de sangue.

Porque a pedra recolhe sementes e nuvens,
ossadas de calhandras e lobos de penumbra;
mas não produz sons, nem cristais, nem fogo,
senão praças e praças e outras praças sem muros.

Já está sobre a pedra lgnacio, o bem-nascido.
Já se acabou; o que acontece? Contemplai a sua figura:
a morte o cobriu de pálidos enxofres
e pôs-lhe uma cabeça de escuro minotauro.

Já se acabou. A chuva penetra-lhe pela boca.
O ar como louco escapa de seu peito afundado,
e o Amor, empapado de lágrimas de neve,
se aquece no topo dos currais.

Que dizem? Um silêncio com fedores repousa.
Estamos com um corpo presente que se esfuma,
com uma forma clara onde rouxinóis havia
e vêmo-la encher-se de buracos sem fundo.

Quem enruga o sudário? Não é verdade o que diz!
Aqui ninguém mais canta, nem chora lá no lado,
nem aplica as esporas, nem espanta a serpente:
aqui não quero nada mais que os olhos redondos
para ver esse corpo sem possível descanso.

Eu quero ver aqui os homens de voz dura.
Os que domam cavalos e dominam os rios:
os homens cuja ossada ressoa, e cantam
com uma boca cheia de sol e pedernais.

Aqui eu quero vê-los. Diante da pedra.
Diante deste corpo com as rédeas arrebentadas.
Eu quero que me mostrem onde está a saída
para este capitão atado pela morte.

Eu quero que me mostrem um pranto com um rio
que tenha doces névoas e praias profundas,
para levar o corpo de lgnacio e que se perca
sem escutar o duplo resfolegar dos touros.

Que se perca na praça redonda da lua
que finge ao ser menina dolente rês imóvel;
que se perca na noite sem canto dos peixes
e na maleza branca do fumo congelado.

Não quero que lhe tapem o rosto com lenços
para que se acostume com a morte que leva.
Vai-te, lgnacio: Não ouças o candente bramido.
Dorme, voa, repousa: O mar também morre!


4. ALMA AUSENTE

O touro não te conhece, nem a figueira,
nem cavalos nem formigas de tua casa.
O menino não te conhece, nem a tarde,
porque morreste para sempre.

O lombo da pedra não te conhece,
nem o chão negro em que te destroças.
Nem te conhece a tua recordação muda,
porque morreste para sempre.

O outono virá com caracóis,
uva de névoa e montes agrupados,
mas ninguém quererá mirar teus olhos,
porque morreste para sempre.

Porque morreste para sempre,
como todos os mortos da Terra,
como todos os mortos que se olvidam
em um montão de cachorros apagados.

Ninguém te conhece. Não. Porém eu te canto.
Eu canto sem tardança teu perfil e tua graça.
A madureza insigne do teu conhecimento.
A tua apetência de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que teve a tua valente alegria.

Tardará muito tempo em nascer, se é que nasce,
um andaluz tão claro, tão rico de aventura.
Canto-lhe a elegância com palavras que gemem
e recordo uma triste brisa nos olivais

Tradução de: não identificado

Cópia a partir do site do Projeto “Lorca na Rua”, do SESC/SP

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

HÉRCULES


wikimedia

Hércules destrói o Leão da Neméia (1634), de Francisco de Zurbarán

FEDERICO GARCIA LORCA


PRANTO POR INÁCIO SANCHEZ MEJÍAS

À minha querida amiga Encarnación López Julvez

1. A CAPTURA E A MORTE

Às cinco horas da tarde.
Eram cinco da tarde em ponto.
Um menino trouxe o branco lençol
às cinco horas da tarde.
Uma esporta de cal já prevenida
às cinco horas da tarde.
O mais era morte e somente morte
às cinco horas da tarde.

O vento levou os algodões
às cinco horas da tarde.
E o óxido semeou cristal e níquel
às cinco horas da tarde.
Já lutam a pomba e o leopardo
às cinco horas da tarde.
E uma coxa para um chifre destroçada
às cinco horas da tarde.
Começaram os sons do bordão
às cinco horas da tarde.

Os sinos de arsênico e a fumaça
às cinco horas da tarde.
Nas esquinas grupos de silêncio
às cinco horas da tarde.
E o touro com todo o coração, para a frente!
às cinco horas da tarde.
Quando o suor de neve foi chegando
às cinco horas da tarde,
quando a praça se cobriu de iodo
às cinco horas da tarde,
a morte botou ovos na ferida
às cinco horas da tarde.
Às cinco horas da tarde.
Às cinco em ponto da tarde.

Um ataúde com rodas é a cama
às cinco horas da tarde.
Ossos e flautas soam-lhe ao ouvido
às cinco horas da tarde.
Por sua frente já mugia o touro
às cinco horas da tarde.

O quarto se irisava de agonia
às cinco horas da tarde.
De longe já se aproxima a gangrena
às cinco horas da tarde.
Trompa de lírio pelas verdes virilhas
às cinco horas da tarde.
As feridas queimavam como sóis
às cinco horas da tarde,
e as pessoas quebravam as janelas
às cinco horas da tarde.
Às cinco horas da tarde.
Ai que terríveis cinco horas da tarde!
Eram cinco horas em todos os relógios!
Eram cinco horas da tarde em sombra!


2. O SANGUE DERRAMADO

Não quero vê-lo!

Dize à lua que venha,
que não quero ver o sangue
de lgnacio sobre a areia.

Não quero vê-lo!

A lua de par em par.
Cavalo de nuvens quietas,
e a praça cinza do sonho
com salgueiros nas barreiras.

Não quero vê-lo!
Que se me queima a recordação.
Avisai aos jasmins
com sua brancura pequena!

Não quero vê-lo!

A vaca do velho mundo
passava a língua triste
sobre um focinho de sangues
derramados sobre a areia,
e os touros de Guisando,
quase morte e quase pedra,
mugiram como dois séculos
fartos de pisar a terra.
Não.
Não quero vê-lo!

Pelos degraus sobe Ignacio
com toda sua morte às costas.
Buscava o amanhecer,
e o amanhecer não era.
Busca o seu perfil seguro,
e o sonho o desorienta.
Buscava o seu formoso corpo
e encontrou seu sangue aberto.
Não me digais que o veja!
Não quero sentir o jorro
cada vez com menos força;
esse jorro que ilumina
os palanques e se verte
sobre a pelúcia e o couro
de multidão sedenta.
Quem grita que eu apareça?
Não me digais que o veja!

Não se fecharam seus olhos
quando viu os chifres perto,
mas as mães terríveis
levantaram a cabeça.
E através das manadas,
houve um ar de vozes secretas
que gritavam a touros celestes,
maiorais de pálida névoa.
Não houve príncipe em Sevilha
que comparar-se-lhe possa,
nem espada como a sua espada
nem coração tão deveras.
Como um rio de leões
sua maravilhosa força,
e como um torso de mármore
sua marcada prudência.
Um ar de Roma andaluza
lhe dourava a cabeça
onde seu riso era um nardo
de sal e de inteligência.

Que grande toureiro na praça!
Que grande serrano na serra!
Quão brando com as espigas!
Quão duro com as esporas!
Quão temo com o rocio!
Quão deslumbrante na feira!
Quão tremendo com as últimas
bandarilhas tenebrosas!

Porém já dorme sem fim.
Já os musgos e já a erva
abrem com dedos seguros
a flor de sua caveira.
E o sangue já vem cantando:
cantando por marismas e pradarias,
resvalando por chifres enregelados,
vacilando sem alma pela névoa,
tropeçando com cascos aos milhares
como uma longa, escura, triste língua,
para formar um charco de agonia
junto ao Guadalquivir das estrelas.
Oh! branco muro de Espanha!
Oh! negro touro de pena!
Oh! sangue duro de lgnacio!
Oh! rouxinol de suas veias!
Não.
Não quero vê-lo!
Não há cálice que o contenha,
não há andorinhas que o bebam,
não há escarcha de luz que o esfrie,
não há canto nem dilúvio de açucenas,
não há cristal que o cubra de prata.
Não.
Eu não quero vê-lo!!

Tradução de: não identificado

Cópia a partir do site do Projeto “Lorca na Rua”, do SESC/SP


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

QUÍRON, TÉTIS E AQUILES

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Aquiles, Tétis e Quíron (1770), de Pompeo Batoni

ARTUR DA TÁVOLA

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Artur da Távola

SONETO INASCIDO

O poema subjaz.
Insiste sem existir
escapa durante a captura
vive do seu morrer.
O poema lateja.
É limbo, é limo,
imperfeição enfrentada,
pecado original.
O poema viceja no oculto
engendra-se em diluição
desfaz-se ao apetecer.
O poema poreja flor e adaga
e assassina o íncubo sentido.
Existe para não ser.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

SABINAS

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A Intervenção das Sabinas (1794-99), de Jacques-Louis David

WILLIAM BUTLER YEATS

VIAJANDO PARA BIZÂNCIO

Aquela não é terra para velhos. Gente
jovem, de braços dados, pássaros nas ramas
— gerações de mortais — cantando alegremente,
salmão no salto, atum no mar, brilho de escamas,
peixe, ave ou carne glorificam ao sol quente
tudo o que nasce e morre, sêmen ou semente.
Ao som da música sensual, o mundo esquece
as obras do intelecto que nunca envelhece.

Um homem velho é apenas uma ninharia,
trapos numa bengala à espera do final,
a menos que a alma aplauda, cante e ainda ria
sobre os farrapos do seu hábito mortal;
nem há escola de canto, ali, que não estude
monumentos de sua própria magnitude.
Por isso eu vim, vencendo as ondas e a distância, em busca da cidade santa de Bizâncio.

Ó sábios, junto a Deus, sob o fogo sagrado,
como se num mosaico de ouro a resplender,
vinde do fogo santo, em giro espiralado,
e vos tornai mestres-cantores do meu ser.
Rompei meu coração, que a febre faz doente
e, acorrentado a um mísero animal morrente,
já não sabe o que é; arrancai-me da idade
para o lavor sem fim da longa eternidade.

Livre da natureza não hei de assumir
conformação de coisa alguma natural,
mas a que o ourives grego soube urdir
de ouro forjado e esmalte de ouro em tramas,
para acordar do ócio o sono imperial;
ou cantarei aos nobres de Bizâncio e às damas,
pousado em ramo de ouro, como um pássa-
ro, o que passou e passará e sempre passa.

Tradução de Augusto de Campos

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

PÉGASO

wikimedia
Pégaso (1821), de Jan Boeckhorst

ALMEIDA GARRET

reprodução
Almeida Garret

AS MINHAS ASAS

Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

- Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que m'as deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
- Veio a ambição, co'as grandezas,
Vinham para m'as cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.

Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
- Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essas luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!
- Tudo perdi n'essa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

NÁIADES

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O Jogo das Náiades (1886), de Arnold Böcklin

PAUL VALÉRY

O CEMITÉRIO MARINHO

Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incende
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
Um longo olhar sobre a calma dos deuses!

Que lavor puro de brilhos consome
Tanto diamante de indistinta espuma
E quanta paz parece conceber-se!
Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria.

Tesouro estável, templo de Minerva,
Massa de calma e nítida reserva,
Água franzida, Olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
-Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, Teto!

Templo do Templo, que um suspiro exprime,
Subo a este ponto puro e me acostumo,
Todo envolto por meu olhar marinho.
E como aos deuses dádiva suprema,
O resplendor solar sereno esparze
Na altitude um desprezo soberano.

Como em prazer o fruto se desfaz,
Como em delícia muda sua ausência
Na boca onde perece sua forma,
Aqui aspiro meu futuro fumo,
Quando o céu canta à alma consumida
A mudança das margens em rumor.

Belo céu, vero céu, vê como eu mudo!
Depois de tanto orgulho e tanta estranha
Ociosidade - cheia de poder -
Eu me abandono a esse brilhante espaço,
Por sobre as tumbas minha sombra passa
E a seu frágil mover-se me habitua.

A alma expondo-se às tochas do solstício,
Eu te afronto, magnífica justiça
Da luz, da luz armada sem piedade!
E te devolvo pura à tua origem:
Contempla-te!... Mas devolver a luz
Supõe de sombra outra metade morna.

Oh, para mim, somente a mim, em mim,
Junto ao peito, nas fontes do poema,
Entre o vazio e o puro acontecer,
De minha interna grandeza o eco espero,
Sombria, amarga e sonora cisterna
- Côncavo som, futuro, sempre, na alma.

Sabes tu, prisioneiro das folhagens,
Golfo roedor de tão finos gradis,
Claros segredos para os olhos cegos
Que corpo a um fim ocioso me compele,
Que fronte o atrai a tal rincão de ossadas?
Um lampejo aqui pensa em meus ausentes.

Sacro, encerrando um fogo sem matéria,
Pouca de terra oferecida à luz,
Prezo este sítio, que dominam tochas,
Composto de ouro, pedras e ciprestes,
Onde mármores tremem sobre sombras.
O mar lá dorme, fiel, sobre meus túmulos.

Cadela esplêndida, afugenta o idólatra!
Quando, sorriso de pastor, sozinho
Apascento carneiros misteriosos
- Branco rebanho de tranqüilos túmulos -
Afasta dele as pombas temerosas
Os sonhos vãos, os anjos indiscretos.

Aqui vindo, o futuro é indolência.
Nítido inseto escava a sequidão;
Tudo queimado está desfeito e no ar
Se perde em não sei que severa essência,
Faz-se a amargura doce e claro o espírito.

Os mortos estão bem, sob esta terra
Que os aquece e resseca seu mistério.
O meio-dia no alto, o meio-dia
Quedo se pensa em si e a si convém.
Fronte completa e límpido diadema,
Eu sou em ti recôndita mudança!

Eu, somente eu, contenho os teus temores!
Meus pesares, limitações e dúvidas
São a falha de teu grande diamante...
Em sua noite grávida de mármores,
Entanto, um povo errante entre as raízes
Tomou já teu partido, lentamente.

Dissolveu-se na mais espessa ausência;
Bebeu vermelho barro a branca espécie;
Passou às flores o dom de viver.
Dos mortos, onde as frases familiares,
A arte pessoal, as almas singulares?
Tece a larva onde lágrimas nasciam.

O riso agudo de afagadas jovens,
Olhos e dentes, pálpebras molhadas,
O seio ousado desafiando o fogo,
Sangue a brilhar nos lábios que se rendem,
Últimos dons e dedos que os defendem
- Tudo se enterra e ao jogo outra vez volta.

E tu, grande alma, acaso um sonho esperas,
Despido, então, das cores de mentira
Que a estes meus olhos a onda e o ouro mostram?
Cantarás, quando fores vaporosa?
Tudo flui! Porosa é minha presença;
A sagrada impaciência também morre.

Magra imortalidade negra e de ouro,
Consoladora com horror laureada,
Que seio maternal fazes da morte
- O belo engano, a astúcia mais piedosa!
Quem não conhece e quem não repudia
Esse crânio vazio, o riso eterno?

Pais profundos, cabeças desertadas,
Que sob o peso de tantas pazadas
Terra sois, confundindo os nossos passos!
O verdadeiro verme, irrefutável,
Não para vós existe, sob a lousa
Ele de vida vive e não me deixa.

Amor, talvez? Talvez ódio a mim mesmo?
Seu dente oculto está de mim tão próximo
Que qualquer nome, acaso, lhe convém.
Que importa!... Ele vê, quer, sonha, ele toca:
Minha carne lhe agrada, e até no leito
Vivo de pertencer a este vivente.

Zenão, cruel! Zenão, Zenão de Eléia!
Feriste-me com tua flecha alada,
Que vibra, voa e que não voa nunca.
O som engendra-me e a flecha me mata!
O sol... Ah, que sombra de tartaruga
Para a alma, Aquiles quedo e tão ligeiro!

Não, não!... De pé! No instante sucessivo!
Rompe meu corpo, a forma pensativa!
Bebe meu seio, o vento que renasce!
Esta frescura a exalar-se do mar
A alma devolve-me... Ó, poder salgado!
Corramos à onda para reviver!

Sim, grande mar dotado de delírios,
Pele mosqueada, clâmide furada
Por incontáveis ídolos do sol,
Hidra absoluta, ébria de carne azul,
Que te mordes a fulgurante cauda
Num tumulto ao silêncio parecido,

Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas!

Tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Confia