Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

quarta-feira, 29 de abril de 2009

HIGÉIA


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Higéia, de Gustav Klimt

WISLAWA SZYMBORSKA


QUARTO DO SUICIDA

Vocês devem achar, sem dúvida, que o quarto esteve vazio.
Mas lá havia três cadeiras de encosto firmes.
Uma boa lampada para afastar a escuridão.
Uma mesa, sobre a mesa uma carteira, jornais.
Buda sereno, Jesus doloroso,
sete elefantes para boa sorte, e na gaveta - um caderno.
Vocês acham que nele não estavam nossos endereços?

Acham que faltavam livros, quadros ou discos?
Mas da parede sorria Saskia com sua flor cordial,
Alegria, a faísca dos deuses,
a corneta consolatória nas mãos negras.
Na estante, Ulisses repousando
depois dos esforços do Canto Cinco.
Os rnoralistas,
seus nomes em letras douradas
nas lindas lombadas de couro.
Os políticos ao lado, muito retos.

E não era sem saída este quarto,
aos menos pela porta,
nem sem vista, ao menos pela janela.
Binóculos de longo alcance no parapeito.
Uma mosca zumbindo - ou seja, ainda viva.

Acham então que talvez uma carta explicava algo.
Mas se eu disser que não havia carta nenhuma -
eramos tantos, os amigos, e todos coubemos
dentro de um envelope vazio encostado num copo.

Tradução de Ana Cristina Cesar

PÁRIS

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A decisão de Páris, de Hendrick Von Balen

terça-feira, 28 de abril de 2009

TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA


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Tomás Antônio Gonzaga


CARTAS CHILENAS

CARTA SEGUNDA
(excerto)


O povo, Doroteu, é como as moscas
Que correm ao lugar, aonde sentem
O derramado mel, é semelhante
Aos corvos e aos abutres, que se ajuntam
Nos ermos, onde fede a carne podre.
À vista, pois, dos fatos, que executa
O nosso grande chefe, decisivos
Da piedade que finge, a louca gente
De toda a parte corre a ver se encontra
Algum pequeno alivio à sombra dele.
Não viste, Doroteu, quando arrebenta
Ao pé de alguma ermida a fonte santa,
Que a fama logo corre e todo o povo
Concebe que ela cura as graves queixas.
Pois desta sorte entende o néscio vulgo
Que o nosso general lugar-tenente,
Em todos os delitos e demandas,
Pode de absolvição lavrar sentenças.
Não há livre, não há, não há cativo
Que ao nosso Santiago não concorra.
Todos buscam ao chefe e todos querem,
Para serem bem vistos, revestir-se
Do triste privilégio de mendigos.
Um as botas descalça, tira as meias
E põe no duro chão os pés mimosos;
Outro despe a casaca, mais a veste
E de vários molambos mal se cobre;
Este deixa crescer a ruça barba,
Com palhas de alhos se defuma aquele;
Qual as pernas emplastra e move o corpo
Metendo nos sobacos as muletas;
Qual ao torto pescoço dependura,
Despido, o braço que só cobre o lenço;
Uns, com bordão, apalpam o caminho,
Outros, um grande bando lhe apresentam
De sujas moças, a quem chamam filhas.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

DÂNAE


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Dânae, de Gustav Klimt

DYLAN THOMAS


NA COXA DO GIGANTE BRANCO

Por entre as gargantas onde cruzam muitos rios, gritam os maçaricos,
Sob a lua fecundada no topo da alta colina de gesso,
E ali, nessa noite, passeio na coxa do Gigante Branco
Onde mulheres estéreis como rochas jazem quietas e ansiosas

Por trabalhar e amar, embora há muito estejam prostradas.

Por entre as gargantas onde cruzam muitos rios, as mulheres rezam,
Rogando na rasa baía para que se derramem as sementes,
Embora a chuva haja apagado os nomes em suas pedras cobertas de ervas,
E sozinhas no eterno e recurvo transcurso da noite
Elas suspiram com suas línguas de aves aquáticas pelos inconcebidos
Filhos imemoriais da esmurrada colina feita em pedaços.

Elas, que certa vez no inverno de penas de ganso amaram todo o gelo
abandonado
Nas veredas dos cortesãos, ou se enroscaram sob o touro abrasador do sol
Nas carroças com cargas tão altas que os feixes de feno
Se grudavam às nuvens pendentes, ou que alegres se deitavam com alguém
Tão jovem quanto elas à luz recém-ordenhada da lua
Sob todas as formas iluminadas da fé, e suas anáguas enluaradas se erguiam
Com a ventania, ou se assustavam com os jovens e ásperos ginetes,
Agora me oprimem contra os seus grãos na gigantesca clareira do bosque,
Elas, que certa vez, para além dos verdes campos, floresciam qual sebes de alegrias.

Há tempos, seu pó foi carne que o astuto porqueiro farejava,
Incendiada no mau cheiro da pocilga nupcial pela impetuosa
Luz de suas coxas, distendidas sob o céu da esterqueira,
Ou por seu pomareiro, nas entranhas do arbusto solar,
Suas madeixas gordurosas eram ásperas como línguas de vaca e cortadas como sarças,
Sob seu verão implacável, como farpas de ouro enfiadas até os ossos,
Ou ondulavam macias como seda no arvoredo lunar
E atiravam pedrinhas no alvo lago que ecoava qual harpa de granizo.

Elas, que outrora foram uma floração de noivas às margens do caminho
da casa dos pilriteiros
E ouviam o campo lascivo e cortejado fluir para as próximas geadas
E o guincho dos empeliçados fradinhos em fuga, ao extinguir-se
O dia, nas naves de cardos, até que a coruja branca cruzasse

Por seu peito, e escutavam o rumor das corças saltitantes, os cervos a subir
Velozes pelo bosque, ante o apelo do amor, lá, onde fumega uma tocha
de raposas.
A todos os pássaros e bestas da noite encadeada elas ouviam repicar em alvoroço
E a toupeira de focinho obtuso a peregrinar sob as cúpulas.

Ou, roliças e untuosas guardadoras de gansos, saltitavam sobre a palha
de uma carroça,
Com os seios túmidos de mel, sob o seu ganso soberano
Que as açoitava com as asas no celeiro sibilante, perdido no passado
E já extinta aquela negra cevada sobre a qual seus tamancos dançavam
na primavera,
E em seus cabelos os grampos luziam como pirilampos, e as medas giravam

(Mas nada nascia, nenhum bebê sugava as veias das colméias,
E desnudas e estéreis na terra da Mãe Ganso
Eram elas, com os humildes aldeãos, unia pedreira de esposas)

Agora o maçarico implora que eu me incline para beijar os lábios de seu pó.

De lá para cá, o rebuliço de suas chaleiras e relógios oscila
Onde agora o feno cavalga ou as cozinhas de samambaias criam mofo
Como o arco das ceifeiras que aparavam as sebes a relâmpagos
E cortavam os ramos dos pássaros avermelhados pela seiva trovadora.
Vindas das casas em que se ajoelham as colheitas, elas me apertam,
Elas, que ouviram dobrar os ruidosos sinos nos domingos dos mortos
E a chuva que escorria de suas línguas no cemitério enevoado,
Ensinam-me que o amor é sempre verde depois que o outono semeia folhas
Sobre o túmulo, depois que o Amado, sobre a cruz enterrada na relva,
Seja varrido pelo sol e as Filhas já não se lamentem
Salvo pelos que há muito as desejam nas ruas em que a raposa deu à luz
Ou ao sentir-se famintas no bosque esfacelado: a tais mortos
Sadios e imortais é que amam as mulheres da colina
Em seu eterno apogeu em meio às árvores dos cortesãos

E as filhas da treva flamejam, todavia, como as fogueiras de Fawkes.

Tradução de Ivan Junqueira

domingo, 26 de abril de 2009

HEFESTO


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A forja de Hefesto, de Giorgio Vasari

JOÃO CABRAL DE MELO NETO


PREGÃO TURÍSTICO DO RECIFE

Aqui o mar é uma montanha
regular redonda e azul,
mais alta que os arrecifes
e os mangues rasos ao sul.

Do mar podeis extrair,
do mar deste litoral,
um fio de luz precisa,
matemática ou metal.

Na cidade propriamente
velhos sobrados esguios
apertam ombros calcários
de cada lado de um rio.

Com os sobrados podeis
aprender lição madura:
um certo equilíbrio leve,
na escrita, da arquitetura.

E neste rio indigente,
sangue-lama que circula
entre cimento e esclerose
com sua marcha quase nula,

e na gente que se estagna
nas mucosas deste rio,
morrendo de apodrecer
vidas inteiras a fio,

podeis aprender que o homem
é sempre a melhor medida.
Mais: que a medida do homem
não é a morte mas a vida.