Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 30 de maio de 2009

BACO E CUPIDO

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Baco bêbado e Cupido, de Jean Leon Gerome

FRIEDRICH HÖLDERLIN


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Friedrich Hölderlin


A CANÇÃO DE HYPERION

Oh santos génios! Vós caminhais,
lá por cima, em luz, sobre terra suave.
Brilhantes deuses etéreos
Tocam-vos levemente,
Qual os dedos da artista
nas cordas santas

Sem destino, como a criança
Adormecida, os anjos respiram;
Castamente guardado
Em discretos botões,
O espírito floresce-lhes,
Eterno,
E os santos olhos
Vêem em silenciosa
E eterna claridade.

Nós, porém, fomos condenados a errar,
Sem descanso, p’la terra fora.
Ao acaso, de uma
Hora para a outra,
Os homens sofredores
Somem-se e caiem,
Como a água atirada de
Recife para recife,
Ano após ano, na incerteza

Tradução de Luís Costa

sexta-feira, 29 de maio de 2009

FLORA


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Flora, de John William Waterhouse

SILVA ALVARENGA


MADRIGAIS

I


Neste áspero rochedo,
A quem imitas, Glaura sempre dura,
Gravo o triste segredo
Dum amor extremoso e sem ventura.
Os Faunos da espessura
Com sentimento agreste
Aqui meu nome cubram de cipreste;
Ornem o teu as Ninfas amorosas
De goivos, de jasmins, lírios e rosas.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

PSIQUÊ

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Psiquê abrindo a caixa dourada, de John William Waterhouse

CACASO


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Cacaso


poética

Alguma palavra,
este cavalo que me vestia como um cetro,
algum vômito tardio modela o verso.

Certa forma se conhece nas infinitas,
a fauna guerreira, a lua fria
encrustada na fria atenção.

Onde era nuvem
sabemos a geometria da alma, a vontade
consumida em pó e devaneio.
E recuamos sempre, petrificados,
com a metafísica
nos dentes: o feto
fixado
entre a náusea e o lençol.

Meu poema me contempla horrorizado.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

FLORA E ZÉFIRO

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Flora e Zéfiro, de John William Waterhouse

LECONTE DE LISLE


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Leconte de Lisle


PAISAGEM POLAR

Do mar a imensa escuma o frio aglomerou-a,
e um mundo morto fez, sem luz, sem vegetais,
e onde do gelo duro as agulhas fatais
rasgam do fusco céu a perpétua garoa;

em avalanches rola a neve, e se amontoa...
Tudo estéril; e atroz confusão de infernais
brados, imprecações, roncos, soluços e ais,
que aos seus clarins de ferro o vento arranca, troa.

Nivoso, hirto, glacial, das brumas através,
o branco e antigo deus, pai das primevas raças,
inteiriçado jaz, do promontório aos pés...

E, a babar de volúpia, em meio à cerração,
os ursos - colossais e formidandas massas -
trôpegos, cá e lá bambaleando vão...

Tradução de Raimundo Correia

terça-feira, 26 de maio de 2009

PÁRIS

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O Julgamento de Páris, de Michele Rocca

TORQUATO NETO


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Torquato Neto


COGITO

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

CIRCE

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Circe, de John William Waterhouse

ALGERNON CHARLES SWINBURNE


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Algernon Charles Swinburne


UMA DESPEDIDA

Vamos, canções, ela não ouviria
Sigamos sem temor por nossa via.
Silêncio, o tempo de cantar passou,
Passou já tudo o que se quis um dia.
Ela não quer o amor que nos marcou.
Fôssemos a voz de um anjo em melodia
E ela não ouviria.
Vamos partir. Ela não saberia.
Vamos ao mar, como é da ventania,
Soprando areia, espuma, que fazer?
Nada a fazer, que a vida é mesmo fria,
E o mundo é lágrimas e é padecer.
Mostrássemos a dor que em nós havia
E ela não saberia.
Para casa! Ela não sofreria.
Demos de amor, sonhos demais, e dias
E flores mortas, frutos condenados,
Dizendo:”Ceifa, como a fantasia”
E nada resta: foi tudo ceifado.
Visse em nós, que plantamos, a agonia,
E ela não sofreria.
Ao descanso! Ela não nos amaria
Nem vai ouvir a nossa litania
Nem ver que amar caminha em dor, no mundo.
Vamos daqui, cessemos a porfia.
O amor é mar amargo, hostil, profundo;
Pudesse o céu dar flores - sim, daria,
E ela não amaria.
Desistamos! Ela nem cuidaria.
Dourasse a estrela os mares que alumia,
Dourasse o mar a vaga que estremece
E a flor da lua a flor da espuma espia,
E as ondas todas sobre nós trouxesse,
Lábios cerrasse, a mão deixasse fria,
E ela nem cuidaria
Vamos canções, ela não nos veria.
Uma vez mais, cantemos, todavia.
Talvez ela relembre o que dissemos
E queira ainda ouvir nossa elegia,
Mas nós, nós já partimos. Nem viemos!
Quem vê sabe da dor que me agonia,
Mas ela não veria.

Tradução de Jorge Wanderley

domingo, 24 de maio de 2009

LAMIA

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Lamia, de Herbert James Draper

DYLAN THOMAS


POEMA EM SEU ANIVERSÁRIO

No sol cor semente de mostarda
Junto ao caudaloso rio em declive e o ziguezague do mar
Onde correm os corvos-marinhos,
Em sua casa sobre estacas, entre os bicos
E o palavrório dos pássaros
Nesse dia como grão de areia na tumba arqueada da baía,
Ele celebra e desdenha
Seus trinta e cinco anos de despojos que o vento amadureceu;
As garças se aguçam e chuçam.

Abaixo e à sua volta fluem
Os linguados, as gaivotas, em suas frias e agônicas trilhas,
Cumprindo o que disseram,
Ruidosos maçaricos nas ondas apinhadas de moréias
Mourejam em seus caminhos para a morte,
E o poeta no quarto de esguia língua ferina,
Que tange o sino de seu aniversário,
Se esfalfa em direção à tocaia de suas chagas;
As garças, agulhas em riste, o abençoam.
No outono dos cardos,
Ele canta para a angústia; os tentilhões voam
Entre os rastros afiados dos falcões
Num céu de rapina; deslizam peixes miúdos
Pelas vielas e as conchas de cidades
Afogadas de barcos até os pastos de lontras submarinas.
Em sua oblíqua casa de suplícios
E nas puídas espirais de seu ofício, ele percebe
As garças que caminham em seu sudário.

A túnica infindável do rio
De vairões se tece ao redor de suas preces;
E lá longe, no mar, ele conhece
Aquele que escraviza o seu fim genuflexo
Sob uma nuvem de serpentes,
Mergulham golfinhos na poeira dos naufrágios,
As rugosas focas arremetem
Para matar e sua própria maré untada de sangue
Resvala suavemente em sua boca macia.

Num silêncio de onda, cavernoso
E oscilante, choram os alvos dobres do ângelus.
Trinta e cinco sinos brandiram seu repique
Sobre o crânio e a cicatriz onde jazem seus amores em ruínas,
Guiados por estrelas cadentes.
E o amanhã soluça numa jaula cega
Que o terror enfurecido há de isolar
Até que os grilhões se quebrem sob martelos em chamas
E o amor dilacere as trevas

E em liberdade ele se perca
Na famosa luz desconhecida do grande
E fabuloso Deus amado.
A treva é um caminho e a luz um lugar,
O céu que nunca existiu
Nem existirá jamais é sempre verdadeiro,
E, nesse espinhoso vazio,
Farto de amoras em seus bosques,
Os mortos crescem para o Seu júbilo.

Ali, desnudo, ele erraria
Com os espíritos da baía que se curva em ferradura
Ou os mortos na praia de estrelas,
Com a medula das águias, as raízes das baleias
E a fúrcula dos gansos selvagens,
Com o Deus abençoado que jamais nasceu e o Seu Espírito,
E com cada alma Seu sacerdote,
Enganada e cantante na jovem dobra do Céu,
Junto à trêmula paz das nuvens.

Mas a treva é um longo caminho.
Ele, sobre a terra da noite, a sós
Com tudo o que vive, reza,
Ele, consciente de que o vento faiscante há de soprar,
Lançando os ossos para além das colinas,
E que as pedras feridas à foice hão de sangrar, e as últimas
Águas despedaçadas pelo ódio hão de arremessar
Os mastros e os peixes às silenciosas estrelas vivas,
Sem nenhuma fé até Aquele

Que é a luz do velho e aéreo
Céu, onde as almas crescem selvagens
Como cavalos na espuma:
Oh, enluta-me na metade da vida junto às relíquias
E aos juramentos das garças-druidas
Durante a viagem que terei de fazer até a ruína,
Entre barcos desvalidos e encalhados;
Ainda que eu grite, todavia, com a língua quase a cair,
E conte em voz alta as minhas chagas:

Quatro são os elementos e cinco
Os sentidos, e o homem uma alma enamorada
Que se enreda através dessa lama rodopiante
Até chegar ao seu reino frio, coroado de sinos
E de enluaradas cúpulas perdidas,
E o mar que oculta suas secretas criaturas
Nas profundezas de seus negros ossos abjetos,
Acalanto de astros na carne calcária do mar,
E essa Suprema bênção derradeira,

Pois quanto mais caminho
Para a morte, um homem com os cascos gretados,
Mais sonoro o sol floresce
E o mar confuso e esquartejado exulta;
E cada onda no caminho
E cada vendaval que enfrento, e todo o mundo então,
Com a fé mais triunfante
Do que nunca desde que se proclamou o mundo,
Faz girar sua manhã de louvores,

Ouço as colinas ondulantes
Inflar-se de cotovias e reverdecer no outono
Turvo de amoras, e as cotovias do orvalho cantam
Mais alto que essa primavera trovejante
E as ferozes ilhas de alma humana
Quanto mais próximas dos anjos flutuam!
Oh, seus olhos tornam-se então mais sagrados
E meus homens cintilantes não estão sós
Enquanto eu navego para a morte.

Tradução de Ivan Junqueira